Lista de devedores de comunicações electrónicas
Publicação:

Uma Lista de Devedores
A exacerbar a lei
Não se serve a consumidores
Nem tem a chancela do Rei
O Regulador das Comunicações Electrónicas adverte:
“Se tiver facturas em dívida de valor superior a 20% do salário mínimo nacional (ou seja, a 133€ desde 1 de Janeiro de 2021), os seus dados podem ser incluídos numa lista de devedores. Esta lista é partilhada entre os operadores de comunicações aderentes.
Antes de incluir os seus dados na lista, o operador deve notificá-lo para, em 5 dias, pagar o valor em dívida, provar que a dívida não existe ou que não lhe é exigível (por exemplo, porque já prescreveu).
Os seus dados não podem ser inscritos na lista de devedores:
- durante o cumprimento de acordo para o pagamento da dívida, se o tiver celebrado;
- se justificar a falta de pagamento das facturas com o não cumprimento do contrato pelo próprio operador; ou
- se tiver reclamado do valor facturado ou provar que não deve o montante que lhe é cobrado.
Assim que for pago o valor em dívida, os dados devem ser imediatamente eliminados da lista.
Qualquer operador pode recusar-se a contratar um serviço com um utilizador que tenha quantias em dívida, mesmo que a outro operador, salvo se a facturação em causa tiver sido reclamada.”
No entanto, situações do mais diverso jaez ocorrem, revelando que, para além da Lista de Devedores, conformemente à lei, autorizada e de circulação restrita para evitar que os consumidores andem a saltar de operador em operador sem cumprir as obrigações a que se acham adstritos, outros listas saem da cartola, como a dos Devedores de Obrigações Naturais.
Repare-se na reclamação deduzida recentemente perante um Gabinete de Apoio ao Consumidor de um Município que dispõe de um convénio de cooperação com a apDC, a que pertencemos:
“Pese embora tenha invocado a prescrição da dívida e, bem assim, a caducidade do prazo para recurso à via judicial (seis meses após a prestação do serviço), fui agora informado pela MEO que as facturas iriam permanecer em dívida na base de dados na medida “em que a dívida continua a existir enquanto obrigação natural, apenas tendo deixado de ser exigível judicialmente” e que “… o processo de contencioso referente a esta conta foi entregue à agência de cobrança INTRUM Portugal...”.
Fui, entretanto, informado, por esta agência de cobranças de que teria de pagar a dívida para que não avançassem com o processo.
E o facto é que o assédio, as ameaças, as intimidações não cessam!”
Dever primeiro a que se adscreve qualquer dos fornecedores, no mercado, é a observância da cláusula geral da boa-fé, nas vertentes por que se desdobra: subjectiva e objectiva.
Tanto “a confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis” como
“o objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado”
Aliás, no pórtico da Lei dos Serviços Públicos Essenciais que vigora em Portugal desde o 1.º de Agosto de 1996 inscreve-se de modo impressivo um tal princípio-regra:
“O prestador do serviço deve proceder de boa-fé e em conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger.”
Como o registámos num outro escrito, “invocada a prescrição, judicial ou extrajudicialmente, remanesce uma obrigação natural: a dívida jamais poderá ser exigida através de acção ou injunção. Daí a contradição, ao ameaçar-se o consumidor com a instauração de um processo ou procedimento judicial, como consta do nefando rol de intimidações que a empresa de cobranças remeteu ao consumidor.
Nem sempre se tem a noção do que seja uma obrigação natural. Obrigação natural é a que se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível: se espontaneamente satisfeita tal obrigações, o seu cumprimento corresponderá a um dever de justiça.
No caso vertente, no confronto entre a segurança e a justiça, dois dos vectores do direito, o legislador conferiu primazia ao valor da segurança jurídica, já que em causa a protecção dos interesses económicos dos consumidores e, aí, o dos equilíbrios dos orçamentos domésticos. Ante o poderio dos monopólios de facto ou o dos quase-oligopólios que preponderam nos serviços de interesse económico geral (os serviços públicos essenciais), os curtos prazos de prescrição visam exactamente a salvaguarda dos periclitantes orçamentos, que ao menor abanão se desconjuntam com grave prejuízo para as contas regulares dos consumidores. E é nisso em que consiste a a segurança jurídica. E pela negligência da cobrança, a incompetência dos mecanismos de gestão ou os desfasamentos empresarias não podem necessariamente ser responsabilizados os consumidores. Que se limitaram a exercer um direito e não podem ser onerados pelo facto.
LISTA NEGRA DOS DEVEDORES DE OBRIGAÇÕES NATURAIS
A criação de uma LISTA NEGRA DOS DEVEDORES DE OBRIGAÇÕES NATURAIS é um artifício e é uma aberração, em vista das consequências que se assacam às dívidas prescritas que apagam as obrigações jurídicas e de que remanescem meras obrigações naturais, inexigíveis juridicamente, judicialmente.
Ademais, como noutro escrito o assinalámos, expõem os consumidores e os seus dados pessoais a uma empresa estranha ao tráfego negocial e, nessa medida, há também uma clara violação do Regulamento Geral de Protecção de Dados, que cumpre, a justo título, denunciar.
Se a empresa de comunicações electrónicas tiver efectuado uma qualquer cessão de dívidas a esse cobrador (qualificado ou não, que inúmeras reclamações suscita, tanto dos particulares, como da própria Ordem dos Advogados pelo exercício de patrocínio ou de procuradoria ilícita, tantas vezes denunciado), infringe o Código Civil que, no seu artigo 577 (é que o crédito está, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor +por se tratar de um serviço público essencial), o proíbe.
A INVOCAÇÃO PRESCRIÇÃO É INIBITÓRIA
Se o consumidor se recusar a pagar, porque invocada a prescrição, não pode daí sofrer qualquer desvantagem, a saber, explicitamente,
- Nem pode ser decretada a suspensão do serviço;
- Menos ainda a extinção do contrato;
- Eventuais exigências de caução ou outras garantias para poder continuar a fruir do serviço;
- A recusa de celebração de um outro contrato que ao consumidor importe…
- A inserção em qualquer lista de baixo teor reputacional (a origem do fenómeno está no credor, que não no devedor: a prescrição não é um favor, é um direito, em homenagem à segurança jurídica, e pelo exercício de um direito, conformemente às normas não poderão advir prejuízos sejam de que ordem for sob pena de se actuar a responsabilidade civil, onde quer que se entenda).
AS RESPONSABILIDADES ASSACADAS À EMPRESA PELO DESCASO EM COBRAR AS DÍVIDAS
O facto de não haver sido cobrada a dívida, no lapso de tempo a tanto consignado, é imputável – só e tão só - à empresa, aos seus procedimentos, aos seus métodos, à sua negligência, à sua incompetência, logo, não poderão daí advir consequências negativas para os consumidores.
O TRATAMENTO DOS DADOS PESSOAIS DOS CONSUMIDORES E SUA TRANSMISSIBILIDADE
Ademais, o tratamento de tais dados só seria lícito, nos termos do Regulamento 2016/679, se necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento estivesse sujeito, o que não é o caso.
E a transmissão de dados só seria lícita, nos termos do artigo 16.º do Regulamento, mediante consentimento do consumidor se razões de ordem pública o não inibissem ou as cláusulas insertas ou apostas num contrato pré-elaborado o não fossem absoluta ou relativamente proibidas, a despeito do consentimento.
O ASSÉDIO
O assédio (as ameaças, as intimidações), para além de prática negocial agressiva, prevista na Lei das Práticas Comerciais Desleais de 2008 (Decreto-Lei 57/2008, de 26 de Abril).
Como o escrevemos noutro trabalho, “o assédio é “insistência impertinente, perseguição, sugestão ou pretensão constantes em relação a alguém.”
E assediar mais não é do que “perseguir com propostas, sugerir com insistência; ser inoportuno ao tentar obter algo; molestar; abordar súbita ou inesperadamente”.
O assédio entrou para a galeria do Direito do Consumo com a Directiva das Práticas Comerciais Desleais emanada do Parlamento Europeu em 11 de Maio de 2005 e transposta para o direito pátrio em 26 de Março de 2008.
Da Lei das Práticas Comerciais Desleais não consta a definição de assédio.
A Lei Contra a Discriminação em Função do Sexo de 12 de Março de 2008 define, porém, assédio como “todas as situações em que ocorra um comportamento indesejado, relacionado com o sexo de uma dada pessoa, com o objectivo ou o efeito de violar a sua dignidade e de criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo.”
A Lei das Práticas Comerciais Desleais considera, como agressivas, entre outras:
. o contactar o consumidor através de visitas ao seu domicílio, ignorando o pedido daquele para que o profissional parta ou não volte, excepto em circunstâncias e na medida em que tal se justifique para o cumprimento de obrigação contratual;
. o fazer solicitações persistentes e não solicitadas, por telefone, telecópia, correio electrónico ou qualquer outro meio de comunicação à distância, …”
Daí que a conduta da (mal afamada) agência de cobranças constitua um ilícito de consumo, como se descreve supra, passível de coima e de sanções acessórias.
O CRIME DE PERSEGUIÇÃO (ASSÉDIO)
Para além do mais, o assédio constitui crime, nos termos do artigo 154 - A do Código Penal, passível de prisão até 3 anos ou multa, se outra mais grave não couber:
1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, directa ou indirectamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - A tentativa é punível.
3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição.
4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
5 - O procedimento criminal depende de queixa.”
O CRIME DE OFENSA À REPUTAÇÃO ECONÓMICA DO CONSUMIDOR
Como muito bem assinala, num dos seus pareceres, a jurista Cristina de Freitas, assessora jurídica da apDC, a conduta havida constitui ainda um crime de ofensa à reputação económica do consumidor, previsto e punido pela Lei Penal Económica (Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro) que, no seu artigo 41 prescreve:
“1 - Quem, revelando ou divulgando factos prejudiciais à reputação económica de outra pessoa, nomeadamente ao seu crédito, com consciência da falsidade dos mesmos factos, desse modo lesar ou puser em perigo interesses pecuniários dessa pessoa será punido com prisão até 1 ano e multa não inferior a 50 dias.
2 - Se o crime for praticado através de qualquer meio de comunicação social, a pena poderá elevar-se de metade nos seus limites mínimo e máximo.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.”
Por conseguinte, as refracções de uma tal conduta lesiva dos direitos de personalidade do consumidor pelo ordenamento jurídico que se lhe afeiçoa são abundantes e carecem de uma actuação conforme das autoridades, sob o influxo dos lesados, para que possa haver alguma ordem no caos.
EM CONCLUSÃO
- Invocada a prescrição de uma dívida, qualquer que seja, remanesce uma “obrigação natural”, insusceptível de cobrança judicial.
- A constituição de uma lista negra de devedores de obrigações naturais é um delírio que exige a pronta intervenção dos psiquiatras do direito e uma ilicitude que berra com o Regulamento Geral de Protecção de Dados e os demais instrumentos normativos.
- O assédio (a perseguição) constitui, para além de prática negocial ilícita, crime passível de prisão até 3 anos e, para tanto, deve ser denunciado ao Ministério Público.
- Como o crime de ofensa à reputação económica passível de 1 ano de prisão e de multa não inferior a 50 dias (que, no limite, pode atingir 500€ / dia).
O que mais se estranha é que todas estas condutas ilícitas sejam protagonizadas por empresas concessionárias de serviços públicos essenciais (serviços de interesse económico geral), que detêm posições de senhorio económico no mercado e agem com enormes desfavores face aos consumidores que são exactamente a sua razão de ser. E os vilipendiam até à medula!
Miserável, é o menos que dizer se pode!