A responsabilidade dos prestadores de serviços em linha no mercado digital
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“Today's agreement on the Digital Services Act is historic, both in terms of speed and of substance. The DSA will upgrade the ground-rules for all online services in the EU. It will ensure that the online environment remains a safe space, safeguarding freedom of expression and opportunities for digital businesses. It gives practical effect to the principle that what is illegal offline, should be illegal online. The greater the size, the greater the responsibilities of online platforms. Today's agreement – complementing the political agreement on the Digital Markets Act last month – sends a strong signal: to all Europeans, to all EU businesses, and to our international counterparts.”
Ursula von der Leiden (23 de Abril de 22)
A Directiva do Comércio Electrónico, editada na Europa (U.E.) em 8 de Junho de 2000, era parca em assacar responsabilidades a quantos preponderassem no mercado digital.
O acervo de regras apontava, em princípio, nesse sentido no intuito de propiciar uma larga expansão de todos os suportes digitais sem os entraves, os empenos, os obstáculos decorrentes de uma regulamentação estreita e coarctante.
DO DIREITO DE PRETÉRITO E AINDA VIGENTE
Sem deixar de afirmar a responsabilidade e remetendo-a para o regime geral, o diploma que vigora em Portugal desde 2004 e constitui a tradução da matriz europeia (da Directiva primeira do Comércio Electrónico datada de 08 de Junho de 2000 e grafada sob o n.º 2000/31), estabelece congruentemente no seu artigo 11, sob a epígrafe
“Responsabilidade dos prestadores de serviços em rede: princípio da equiparação”
“A responsabilidade dos prestadores de serviços em rede está sujeita ao regime comum, nomeadamente em caso de associação de conteúdos, com as especificações constantes dos artigos seguintes.”
E, com efeito, estatui, em seguida, a ausência de um dever geral de vigilância dos prestadores intermediários de serviços, como que afastar in limine a obrigação in vigilando por que se desdobra a responsabilidade civil.
E, com efeito, no seu artigo 12.º, sob a epígrafe
“Ausência de um dever geral de vigilância dos prestadores intermediários de serviços” prescreve:
“Os prestadores intermediários de serviços em rede não estão sujeitos a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam ou de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito.”
E no artigo subsequente se versa sobre
Os deveres comuns dos prestadores intermediários dos serviços
Cabe aos prestadores intermediários de serviços a obrigação para com as entidades competentes:
- De informar de imediato quando tiverem conhecimento de actividades ilícitas que se desenvolvam por via dos serviços que prestam;
- De satisfazer os pedidos de identificar os destinatários dos serviços com quem tenham acordos de armazenagem;
- De cumprir prontamente as determinações destinadas a prevenir ou pôr termo a uma infracção, nomeadamente no sentido de remover ou impossibilitar o acesso a uma informação;
- De fornecer listas de titulares de sítios que alberguem, quando lhes for pedido.
Já no que tange ao simples transporte se estabelece que
O prestador intermediário de serviços que prossiga apenas a actividade de transmissão de informações em rede, ou a de facultar o acesso a uma rede de comunicações, sem estar na origem da transmissão nem ter intervenção no conteúdo das mensagens transmitidas nem na selecção destas ou dos destinatários, é isento de toda a responsabilidade pelas informações transmitidas.
A irresponsabilidade mantém-se ainda que o prestador realize a armazenagem meramente tecnológica das informações no decurso do processo de transmissão, exclusivamente para as finalidades de transmissão e durante o tempo necessário para esta.
Armazenagem Intermediária
E, no que em particular se refere à “armazenagem intermediária”, estatui-se o que segue:
O prestador intermediário de serviços de transmissão de comunicações em rede que não tenha intervenção no conteúdo das mensagens transmitidas nem na selecção destas ou dos destinatários e respeite as condições de acesso à informação é isento de toda a responsabilidade pela armazenagem temporária e automática, exclusivamente para tornar mais eficaz e económica a transmissão posterior a nova solicitação de destinatários do serviço.
A aplicar-se-á, porém, o regime comum de responsabilidade se o prestador não proceder segundo as regras usuais do sector:
- Na actualização da informação;
- No uso da tecnologia, aproveitando-a para obter dados sobre a utilização da informação.
As regras comuns passam também a ser aplicáveis se chegar ao conhecimento do prestador que a informação foi retirada da fonte originária ou o acesso tornado impossível ou ainda que um tribunal ou entidade administrativa com competência sobre o prestador que está na origem da informação ordenou essa remoção ou impossibilidade de acesso com exequibilidade imediata e o prestador não a retirar ou impossibilitar imediatamente o acesso.
Armazenagem principal: afirmação inconcussa da responsabilidade
O prestador intermediário do serviço de armazenagem em servidor só é responsável, nos termos comuns, pela informação que armazena se tiver conhecimento de actividade ou informação cuja ilicitude for manifesta e não retirar ou impossibilitar logo o acesso a essa informação.
Há responsabilidade civil sempre que, perante as circunstâncias que conhece, o prestador do serviço tenha ou deva ter consciência do carácter ilícito da informação.
Aplicam-se as regras comuns de responsabilidade sempre que o destinatário do serviço actuar subordinado ao prestador ou for por ele controlado.
Responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços de associação de conteúdos
Os prestadores intermediários de serviços de associação de conteúdos em rede, por meio de instrumentos de busca, hiperconexões ou processos análogos que permitam o acesso a conteúdos ilícitos estão sujeitos a regime de responsabilidade correspondente ao que figura no passo precedente.
CONFLITUALIDADE EMERGENTE
SOLUÇÃO PROVISÓRIA DE LITÍGIOS
De harmonia com o que se plasmou no artigo 18 da Lei do Comércio Electrónico de 2004, a solução provisória de litígios é susceptível de se lograr em dados termos:
O prestador intermediário de serviços, se a ilicitude não for manifesta, não é obrigado a remover o conteúdo contestado ou a impossibilitar o acesso à informação só pelo facto de um interessado arguir uma violação.
Nestas circunstâncias, porém, qualquer interessado pode recorrer à entidade de supervisão respectiva, que deve dar uma solução provisória em quarenta e oito horas e logo a comunica electronicamente aos intervenientes.
Quem tiver interesse jurídico na manutenção do conteúdo em linha pode, nos mesmos termos. recorrer à entidade de supervisão contra uma decisão do prestador de remover ou impossibilitar o acesso a um tal conteúdo, para obter a solução provisória do litígio.
A entidade de supervisão pode a qualquer tempo alterar a composição provisória do litígio estabelecida.
Qualquer que venha a ser a decisão, nenhuma responsabilidade recai sobre a entidade de supervisão e tão-pouco sobre o prestador intermediário de serviços por ter ou não retirado o conteúdo ou impossibilitado o acesso a mera solicitação, quando não for manifesto se há ou não ilicitude.
A solução definitiva do litígio. porém, realizar-se-á nos termos e pelas vias comuns.
O recurso a tais meios, em si pelas vias extrajudiciais, não prejudica o recurso pelos interessados, ainda que em simultaneidade, das instâncias da ordem judicial, como se observa entre nós, em que de par com estas se perfilam as da ordem de jurisdição administrativa e fiscal.
Relação com o direito à informação
A associação de conteúdos não é considerada irregular unicamente por haver conteúdos ilícitos no sítio de destino, ainda que o prestador tenha consciência do facto.
A remissão é lícita se for realizada com objectividade e distanciamento, representando o exercício do direito à informação, sendo, pelo contrário, ilícita se representar uma maneira de tomar como próprio o conteúdo ilícito para que se remete.
A avaliação é realizada perante as circunstâncias do caso, nomeadamente:
- A confusão eventual dos conteúdos do sítio de origem com os de destino;
- O carácter automatizado ou intencional da remissão;
- A área do sítio de destino para onde a remissão é efectuada.
E, no que tange a aos deveres de informação, realce para o dispositivo que segue:
Os prestadores intermediários de serviços em rede informam, de imediato a terem conhecimento, o Ministério Público da detecção de conteúdos disponibilizados por meio dos serviços que prestam sempre que um tal acto ou o acesso aos sobreditos conteúdos, possa constituir crime, nomeadamente crime de pornografia de menores ou crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.
Deveres de bloqueio
Sem menoscabo do que antecede, os prestadores intermediários de serviços em rede asseguram, em 48 horas, o bloqueio dos sítios identificados como contendo pornografia de menores ou material conexo, através de procedimento transparente e com garantias adequadas, nomeadamente assegurando que a restrição se limita ao que é necessário e proporcionado, e que os utilizadores são informados do motivo das restrições.
Para tais efeitos, são considerados sítios identificados como contendo pornografia de menores ou material conexo os que integrem as listas elaboradas para esse efeito pelas entidades nacionais e internacionais competentes em matéria de prevenção e combate à criminalidade, de harmonia com o que segue.
As listas a que se alude são comunicadas aos prestadores intermediários de serviços em rede e à Procuradoria-Geral da República pelas entidades que as elaboraram, com a colaboração das autoridades sectoriais competentes, as quais, para o efeito, fornecem também à Procuradoria-Geral da República todos os elementos identificativos dos prestadores intermediários de serviço em rede e informam de quaisquer alterações que ocorram nessa matéria.
O bloqueio destarte realizado, importa significa-lo, pode ser impugnado perante o juiz competente, nos termos gerais.
O DIREITO NA FORJA (IN ITINERE)
DE JURE CONDENDO
O Regulamento dos Serviços Digitais (o Digital Service Act), ora na forja e que a lume veio, sob proposta da Comissão Europeia, em 2020,na sua versão original [art.º 3.º], esboçava assim o regime no que tange ao simples transporte:
Na hipótese de informações prestadas por um destinatário do serviço ou na concessão de acesso a uma rede de comunicações, o prestador do serviço não é responsável pelas informações transmitidas, desde que:
- Não esteja na origem da transmissão;
- Não seleccione o destinatário da transmissão; e
- Não seleccione nem modifique as informações objecto da transmissão.
As actividades de transmissão e em que se propicie o acesso a que se alude no passo precedente abrangem a armazenagem automática, intermédia e transitória das informações transmitidas, desde que tal armazenagem sirva exclusivamente para a execução da transmissão na rede de comunicações e a sua duração não exceda o tempo considerado razoavelmente necessário para uma tal transmissão.
O ora disposto não afecta a possibilidade de um tribunal ou autoridade administrativa, de acordo com os sistemas legais dos Estados-membros, exigir do prestador que previna ou ponha termo a uma infracção.
ARMAZENAGEM TEMPORÁRIA
Já no que se reporta ao “caching”, ou seja, à armazenagem temporária, o artigo subsequente estabelece que
“Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista na transmissão, através de uma rede de comunicações, de informações prestadas por um destinatário do serviço, o prestador do serviço não é responsável pela armazenagem automática, intermédia e temporária dessas informações, efectuada apenas com o objectivo de tornar mais eficaz a transmissão posterior das informações a outros destinatários do serviço, a pedido dos mesmos, desde que:
- Não modifique as informações;
- Respeite as condições de acesso às informações;
- Respeite as regras relativas à actualização das informações, indicadas de forma amplamente reconhecida e utilizada pelo sector;
- Não interfira com a utilização legítima da tecnologia, tal como amplamente reconhecida e utilizada pelo sector, a fim de obter dados sobre a utilização das informações; e
- Actue com diligência para remover as informações que armazenou ou para impossibilitar o acesso às mesmas, logo que tome conhecimento efectivo de que as informações foram removidas da rede na fonte de transmissão inicial, de que o acesso às mesmas foi tornado impossível ou de que um tribunal ou autoridade administrativa ordenou que as informações fossem removidas ou que o acesso às mesmas fosse impossibilitado.
O que neste passo se dispõe não afecta a possibilidade de um tribunal ou autoridade administrativa, de acordo com os sistemas legais dos Estados-membros, exigir do prestador que previna ou ponha termo a uma infracção.
Já na “armazenagem em servidor” também há escusa de responsabilidade nos termos que seguem:
“Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista na armazenagem de informações prestadas por um destinatário do serviço, o prestador do serviço não é responsável pelas informações armazenadas a pedido de um destinatário do serviço, desde que:
- Não tenha conhecimento efectivo da actividade ou conteúdo ilegal e, no que se refere a uma acção de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciem a ilegalidade da actividade ou do conteúdo; ou
- A partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, actue com diligência no sentido de remover ou impossibilitar o acesso aos conteúdos ilegais.
A disciplina traçada no passo precedente [a da irresponsabilidade do prestador de serviço na armazenagem em servidor] não é aplicável nos casos em que o destinatário do serviço actue sob autoridade ou controlo do prestador.
Do mesmo passo não se aplica no que respeita à responsabilidade, nos termos do direito em matéria de protecção dos consumidores, de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com comerciantes, sempre que essas plataformas apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transacção específica em causa induza um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objecto da transacção é fornecido pela própria ou por um destinatário do serviço que actue sob a sua autoridade ou controlo.
Por conseguinte, neste particular, a responsabilidade afirma-se em homenagem à Carta de Direitos do Consumidor.
O que a este propósito se prescreve não afecta a possibilidade de um tribunal ou autoridade administrativa, de acordo com os sistemas legais dos Estados-membros, exigir do prestador que previna ou ponha termo a uma dada infracção.
Investigações voluntárias por iniciativa própria e conformidade legal
Os prestadores de serviços intermediários não são considerados inelegíveis para beneficiar das isenções de responsabilidade nas hipóteses de simples transporte, armazenagem temporária («Caching») e armazenagemem servidorapenas por realizarem investigações voluntárias por iniciativa própria ou outras actividades destinadas a detectar, identificar e remover ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais, ou por tomarem as medidas necessárias para cumprir os requisitos do direito da União Europeia, em que se incluem os que o regulamento proverá.
Inexistência de obrigações gerais de vigilância ou de apuramento activo dos factos
Exclusão de responsabilidade: não será imposta a esses prestadores qualquer obrigação geral de controlar as informações que os prestadores de serviços intermediários transmitem ou armazenam, nem de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiquem ilicitudes.
Já no que tange a “ordens de actuação contra conteúdos ilegais”signifique-se que
“Os prestadores de serviços intermediários devem, após recepção de uma decisão que ordene a actuação contra um elemento específico de conteúdo ilegal, emitida pelas autoridades judiciárias ou administrativas nacionais competentes, com base no direito da União ou no direito interno aplicável, informar, em conformidade com o direito da União, a autoridade que emitiu a decisão do seguimento dado, sem demora injustificada, especificando as medidas tomadas e o momento em que foram tomadas.”
Aos Estados-membros incumbe assegurar que as decisões a que se reporta o parágrafo precedente satisfaçam dados requisitos, a saber, que
- As decisões incluam os elementos que segue:
o uma exposição dos motivos pelos quais a informação é considerada conteúdo ilegal, fazendo referência à disposição específica do direito da União ou do direito interno infringida,
o um ou mais localizadores uniformes de recursos exactos e, se necessário, informações adicionais que permitam a identificação do conteúdo ilegal em causa,
o informações sobre as vias de recurso à disposição do prestador do serviço e do destinatário do serviço que forneceu o conteúdo;
- O âmbito territorial da decisão, com base nas regras aplicáveis do direito da União e do direito nacional, incluindo a Carta e, quando pertinente, nos princípios gerais do direito internacional, não exceda o estritamente necessário para alcançar o seu objectivo;
- A decisão se encontre redigida na língua declarada pelo prestador e se expeça ao ponto de contacto, nomeado pelo prestador.
O coordenador dos serviços digitais do Estado-membro da autoridade judiciária ou administrativa que emitiu a decisão enviará, sem demora injustificada, uma cópia das decisões a que se alude a todos os outros coordenadores dos serviços digitais através de sistema próprio para o efeito estabelecido.
As condições e os requisitos estabelecidos não prejudicarão os requisitos do direito processual penal nacional em conformidade com o direito da União.
Ordens de prestação de Informações
E no que se refere a “ordens de prestação de informações” destaque para as regras segundo as quais:
Os prestadores de serviços intermediários devem, após recepção de uma decisão que ordene a prestação de informações específicas sobre um ou mais destinatários individuais específicos do serviço, emitida pelas autoridades judiciárias ou administrativas nacionais competentes com base no direito da União ou no direito interno aplicável, em conformidade com o direito da União, informar - sem demora injustificada - a autoridade que emitiu a decisão da sua recepção e aplicação.
Os Estados-Membros assegurarão que tais decisões satisfazem as seguintes condições:
- Elementos que nela se incluem:
o uma exposição de motivos que explique o objectivo para o qual a informação é necessária e a razão pela qual a exigência de fornecer a informação é necessária e proporcionada para determinar o cumprimento das regras do direito da União ou do direito interno aplicáveis pelos destinatários dos serviços intermediários, a menos que tal exposição não possa ser fornecida por motivos relacionados com a prevenção, investigação, detecção e repressão de crimes,
o informações sobre as vias de recurso à disposição do prestador e dos destinatários do serviço em causa;
A decisão exige apenas que o prestador forneça informações já recolhidas para efeitos de prestação do serviço e que estejam sob o seu controlo;
A decisão encontra-se redigida na língua declarada pelo prestador e é enviada ao ponto de contacto nomeado por esse prestador, como noutro passo se aludiu.
O coordenador dos serviços digitais do Estado-membro da autoridade judiciária ou administrativa nacional que emitiu a decisão envia, sem demora injustificada, uma cópia da decisão a todos os coordenadores dos serviços digitais através do sistema para o efeito estabelecido.
As condições e os requisitos ora estabelecidos não prejudicam os requisitos do direito processual penal nacional em conformidade com o direito da União.
II
A POSIÇÃO DO
‘BUREAU EUROPÉEN DES UNIONS DE CONSOMMATEURS’
FACE ÀS INICIATIVAS LEGISLATIVAS EM CURSO
O BEUC – Bureau Européen des Unions de Consommateurs -, pelo punho da sua sub-directora-geral, manifestou-se tempestivamente ante a Comissão Europeia, o Parlamento e o Conselho da União, em termos assaz duros:
“Assim como o Parlamento Europeu e o Conselho de Ministros da UE estão a preparar-se para começar a examinar as propostas da Comissão Europeia para uma Lei dos Serviços Digitais (DSA) e uma Lei dos Mercados Digitais (DMA) de Dezembro de 2020, é oportuno recordar por que razão o BEUC acolhe estas propostas como um importante passo em frente para enfrentar as ameaças aos consumidores na economia digital e quais são as potenciais armadilhas.
Estas duas medidas poderiam melhorar significativamente a forma como a economia digital europeia funciona, dar aos consumidores uma parte mais justa dos benefícios dos serviços digitais, e aumentar a protecção dos consumidores no mundo em linha.
No entanto, duas condições devem ser cumpridas para que o DSA (Digital Services Act) e o DMA (Digital Market Act) atinjam os seus objectivos.
Em primeiro lugar, o Parlamento Europeu e o Conselho de Ministros da UE devem colmatar algumas grandes lacunas nas propostas da Comissão.
Em segundo lugar, devem resistir a fortes pressões, nomeadamente de gigantes tecnológicos como o Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft, procurando diluir e neutralizar tais propostas.
Pontos fortes e pontos fracos do DSA
O DSA estabelece obrigações em plataformas para combater actividades ilegais em linha.
O BEUC congratula-se particularmente com o facto de os mercados em linha terem de assegurar que os comerciantes nas suas plataformas possam ser identificados.
Saúda igualmente que as regras se apliquem aos prestadores de serviços intermediários, incluindo os estabelecidos fora da União Europeia, que existam regras para assegurar uma maior transparência na publicidade em linha e que os consumidores tenham a possibilidade de lhes ser recomendado um conteúdo que não se baseie na definição de perfis.
No entanto, para que o DSA seja mais eficaz, o Parlamento e o Conselho deveriam colmatar uma série de lacunas. Como ponto de partida, a protecção do consumidor deve ser definida como um objectivo explícito do DSA e isto deve reflectir-se no texto, especialmente nas áreas de responsabilidade, responsabilidades e aplicação.
Em primeiro lugar, o DSA deve prever claramente a responsabilidade dos mercados em linha, de modo a que os consumidores possam procurar obter o ressarcimento dos danos em certos casos. As plataformas não necessitam de protecção adicional, mas os consumidores sim.
A proposta aborda parcialmente esta questão, mas apenas em caso de confusão sobre a identidade daquele com o qual o consumidor está a realizar uma transacção.
As plataformas não necessitam de mais protecção, mas os consumidores sim.
Em segundo lugar, as plataformas carecem de responsabilidades claras, pelo que se não admite que a responsabilidade só se afirme como último recurso. Algumas das obrigações propostas devem aplicar-se a todas as plataformas, e não apenas a plataformas com uma dada dimensão. Além disso, algumas obrigações devem ser reforçadas. Por exemplo, as plataformas em linha deveriam ser obrigadas a efectuar verificações aleatórias de produtos e serviços, tal como fazem as organizações de consumidores. Actualmente, isto só acontece numa base voluntária, sem consequências em caso de ausência de actuação.
De momento, são necessários apenas minutos para listar ou promover um produto ilegal em linha numa plataforma como a Amazon, uma vez que não existem controlos significativos. Tal aconteceu com a organização - que membro do BEUC no Reino Unido - Wich?. Apesar de ter reportado sobre cadeiras auto muito perigosas ao longo dos anos, a Which? poderia ainda publicá-las numa questão de minutos, permanecendo em linha até que a Which? decidiu retirar o seu alerta devido à inacção da plataforma.
Em terceiro lugar, o sistema de aplicação do DSA baseia-se no princípio do país de origem também para determinar a jurisdição.
O BEUC congratula-se com o facto de uma empresa poder actuar em toda a UE se estiver estabelecida num dos mercados da UE. Isto abre a porta a mais concorrência e escolha do consumidor. No entanto, as queixas devem ser tratadas onde os consumidores são afectados, e não onde a plataforma se acha estabelecida. O que é particularmente importante para as principais plataformas. A possibilidade de a Comissão Europeia intervir se as autoridades nacionais não tomarem medidas é positiva, mas receia-se que seja demasiado tarde para proporcionar uma reparação rápida e eficaz. As regras sobre execução e reparação precisam de ser aperfeiçoadas.
As queixas devem ser tratadas onde os consumidores são afectados, e não onde a plataforma se estabelece
Pontos fortes e fracos do DMA
O DMA permitiria à Comissão combater proactivamente o comportamento desleal dos “guardiães de acesso” (controladores de acesso se grafa nos documentos analisados) e facilitar a entrada de novos operadores nos mercados digitais. Tal funcionaria como um complemento à aplicação reactiva das regras da concorrência da UE.
O BEUC congratula-se com o facto de a Comissão Europeia ser responsável pela aplicação a nível da UE, de os “guardiões de acesso” estarem sujeitos a algumas fortes obrigações e proibições e de haver disposições para actualizar as regras em conformidade com o progresso técnico e a evolução do mercado.
No entanto, a proposta da Comissão Europeia só pode ser um ponto de partida. Em particular, o Parlamento Europeu e os Estados-membros devem dar mais atenção aos consumidores, enquanto a actual proposta do DMA se preocupa principalmente com a injustiça para com outras empresas e para os clientes comerciais.
O DMA deveria também facilitar às empresas a concorrência com os “guardiães de acesso” nos seus serviços essenciais, em vez de se limitar a serviços auxiliares. Como parte disto, o DMA deveria permitir a possibilidade de impor requisitos de interoperabilidade eficazes para que, por exemplo, os concorrentes pudessem oferecer uma rede de comunicação social concorrente que permitisse aos consumidores afixar mensagens da sua rede de comunicação social, no Facebook, por exemplo.
O Parlamento Europeu e os Estados-membros devem dar mais atenção aos consumidores, enquanto a actual proposta do DMA se preocupa principalmente com a injustiça em relação a outras empresas e clientes comerciais.
O DMA proibiria os “guardiões de acesso” de utilizar barreiras técnicas e legais para impedir que os utilizadores finais mudem de fornecedor, possam desinstalar aplicações, instalar outras aplicações ou lojas de aplicações ou fazer uso da portabilidade dos dados. Ora, isto não é suficiente para garantir a escolha do consumidor. O DMA deve também proibir a utilização de "padrões obscuros" e outras arquitecturas de escolha não neutras que influenciam sub-repticiamente o comportamento dos consumidores, inclusive em relação à outorga do seu consentimento. Estas podem ser barreiras igualmente eficazes à genuína escolha do consumidor.
As sanções actualmente propostas por violação da lei são demasiado fracas e demorariam demasiado tempo a corrigir eficazmente as infracções. A Comissão Europeia pode impor ordens de cessação e desistência e multas, mas isto pode muito bem ser insuficiente para dissuadir violações ou reparar os danos por elas causados.
O Parlamento e o Conselho da União devem tornar mais fácil e mais rápido impor soluções comportamentais e estruturais em caso de incumprimento. Nos termos da actual proposta, tais soluções só poderiam ser impostas por incumprimento sistemático, por exemplo, se o guardião de acesso tivesse infringido as regras três vezes nos últimos cinco anos e "reforçado ou alargado ainda mais a sua posição de controlador" e só depois de uma investigação de mercado. Isto é demasiado lento para garantir que a contestabilidade não seja irremediavelmente prejudicada em mercados digitais em rápida evolução.
Actualmente, os prazos tendem a favorecer os controladores de acesso. Por exemplo, um guardião de acesso teria direito, dentro de apenas três meses, a solicitar à Comissão Europeia a suspensão de novas obrigações e proibições, enquanto as decisões sobre obrigações de um tal guardião demorariam significativamente mais tempo.
Lobbying pesado para diluir a DSA e DMA
Os gigantes da tecnologia e os seus aliados lutarão com unhas e dentes para reverter as propostas da Comissão porque a legislação os obrigaria a alterar fundamentalmente as suas práticas comerciais actuais, extremamente lucrativas, que lhes permitem jogar a economia digital de acordo com os seus interesses estreitos e adquiridos.
De facto, as propostas da Comissão podem indicar que os gigantes da tecnologia já provaram a eficácia do seu lobbying, limitando, por exemplo, em grande medida, o foco principal do DMA a impedir que os guardiães de acesso se expandam para mercados adicionais em vez de aumentar a concorrência nos serviços essenciais que oferecem.
Os próprios gigantes da tecnologia constituem uma legião extremamente bem financiada e influente de lobistas. São também susceptíveis de utilizar as dezenas de grupos de reflexão supostamente independentes com os quais estão envolvidos. Há também o problema da investigação "independente" dos académicos que, na prática, é patrocinada pela Big Tech.
No entanto, o BEUC confia que as instituições da UE não permitirão que os enormes recursos e poder de fogo do lobby da Big Tech os desviem da remodelação da paisagem digital da Europa em benefício dos consumidores e outros utilizadores finais.”
III
A RESPONSABILIDADE DOS PRESTADORES DE MERCADOS EM LINHA
NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA
O legislador pátrio entendeu prover os consumidores de um instrumento que visasse assegurar, desde logo, a
“responsabilidade dos prestadores de mercado em linha”
E, com efeito, assim o estatuiu, aproveitando o ensejo da transposição da Directiva dos Conteúdos e Serviços Digitais e da de Alguns Aspectos do Regime da Compra e Venda de Bens de Consumo, ambas de 20 de Maio de 2019 (2019/770 e 2019/771, respectivamente), pelo DL 84/2018, de 18 de Outubro. E que entrou em vigor no 1.º de Janeiro próximo passado.
O prestador de mercado em linha (uma empresa como as que abrem a sua plataforma a outras entidades e nelas se oferecem produtos e serviços do mais diverso jaez), parceiro contratual do fornecedor que coloca no mercado produto, conteúdo ou serviço digital, é solidariamente responsável, perante o consumidor, pela não conformidade que neles se verifique.
Considera-se que o prestador de mercado em linha é parceiro contratual do fornecedor sempre que exerça influência predominante na celebração do contrato, o que se verifica, designadamente, nas seguintes situações:
- O contrato é celebrado exclusivamente através dos meios disponibilizados pelo prestador de mercado em linha;
- O pagamento é exclusivamente efectuado através de meios disponibilizados pelo prestador de mercado em linha;
- Os termos do contrato celebrado com o consumidor são essencialmente determinados pelo prestador de mercado em linha ou o preço a pagar pelo consumidor é passível de ser influenciado por este; ou
- A publicidade associada é focada no prestador de mercado em linha e não nos fornecedores (como no caso, entre nós, por exemplo, da WORTEN, da FNAC, do Marketplace ou da OLX).
Podem ser considerados, para aferição da existência de influência predominante do prestador de mercado em linha na celebração do contrato, quaisquer factos susceptíveis de fundar no consumidor a confiança de que aquele tem uma influência predominante sobre o fornecedor que disponibiliza o bem, conteúdo ou serviço digital.
O prestador de mercado em linha que não seja parceiro contratual de quem fornece o bem, conteúdo ou serviço digital deve, antes da celebração do contrato, informar os consumidores, de forma clara e inequívoca:
- De que o contrato será celebrado com o fornecedor e não com o prestador de mercado em linha;
- Da identidade do fornecedor, bem como da sua qualidade de profissional ou, caso tal não se verifique, da não aplicação dos direitos previstos na lei; e
- Dos contactos do fornecedor para efeitos de exercício dos enunciados direitos.
O prestador de mercado em linha pode basear-se nas informações que lhe são facultadas pelo fornecedor, a menos que conheça, ou devesse conhecer, com base nos dados disponíveis relativos às transacções em plataforma, que tal informação é incorrecta.
O incumprimento do que se dispõe neste particular determina a responsabilidade do prestador de mercado em linha.
O prestador de mercado em linha que, nos termos enunciados, se torne responsável perante o consumidor por declarações enganosas do profissional ou pelo incumprimento do contrato imputável ao fornecedor, tem o direito de ser indemnizado pelo fornecedor, de acordo com a lei geral (através do denominado direito de regresso).
Conquanto os acertos [e os acordos] finais estejam por semanas ou por escassos meses, urge não perder de vista quanto se obtempera neste particular para que os consumidores – que são o sustentáculo da economia (por óbvio, não há mercado sem consumidores ) – não se transformem em piões das nicas com os gigantes da tecnologia a ficar com a parte de leão e os consumidores despojados do que se considera ser o núcleo basilar dos seus direitos afectados pelos avanços com sucesso dos lobbies da Big Tech frente às instâncias legiferantes da União Europeia.
Eis algo que se almeja por elementar e por ser da mais basilar noção de justiça.