Assinou… Está assinado! Não ponderou, está “tramado”?
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Vem-se enraizado, entre nós, a ideia de que ao apor-se a assinatura num qualquer contrato de adesão (no frontispício da folha de papel ou no seu reverso) os consumidores terão de suportar as cláusulas dela constantes por mais desfavoráveis que se apresentem.
E há quem afirme que o consumidor tem de ler tudo para que se não precipite ao assinar o que leu ou não, ainda que as cláusulas se apresentem em letras miudinhas, ilegíveis, imperceptíveis, como as que se grafam em papel de baixa gramagem e em tons cinza insusceptíveis de uma leitura “à séria”, como se diz na gíria lá para as bandas de Lisboa…
A Lei-Quadro de Defesa do Consumidor (LDC), no dispositivo em que tende a concretizar os aspectos mais relevantes do princípio da protecção dos interesses económicos do consumidor, prescreve imperativamente nos n.º s 1 e 2 do seu artigo 9.º o que segue:
1 - O consumidor tem direito à proteção dos seus interesses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos.
2 - Com vista à prevenção de abusos resultantes de contratos pré-elaborados, o fornecedor de bens e o prestador de serviços estão obrigados:
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À redacção clara e precisa, em caracteres facilmente legíveis, das cláusulas contratuais gerais, incluindo as inseridas em contratos singulares;
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À não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor.”
Um contrato singular formado com base num suporte físico (formulário) de adesão tem de obedecer a um sem-número de requisitos formais de molde a tornar-se apto a uma análise material (o saber se aquelas cláusulas valem num contrato daquele tipo, se não estão inquinadas de qualquer vício, se não são leoninas, se não se apresentam, na circunstância ou em geral, como abusivas).
Eis os passos que o intérprete deve seguir ao analisar formalmente um contrato singular decalcado das condições gerais ofertadas à contratação:
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a cognoscibilidade
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a ponderabilidade
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a legibilidade
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a inteligibilidade
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a vinculatividade
E, no que se prende com a legislação pátria, em que dispositivos nos firmamos para afirmar tais requisitos?
Com efeito, se nos socorrermos dos dispositivos quer da Lei-Quadro da Defesa do Consumidor, quer da Lei das Condições Gerais dos Contratos de1985 – LCGC - (já que Portugal dispõe de uma lei específica para o efeito, ao contrário do que sucede no Brasil, em que a matéria está – e bem – acantonada no Código de Defesa do Consumidor; só que Portugal não dispõe de um Código em que se condensem as leis pertinentes aos direitos do consumidor), deparar-se-nos-á, em primeiro lugar, o artigo 5.º, cujo teor é o que segue:
“1 - As cláusulas contratuais… devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.”
Donde, o retirar-se daqui os dois primeiros requisitos:
O da cognoscibilidade (que se desdobra na comunicação e na informação) e o da ponderabilidade.
Não pode o consumidor estar sujeito a pressões para que assine de imediato, sem ponderar, quiçá, sem ler porque os bens ofertados “estão a esgotar-se” ou porque as “facilidades” pretensamente “oferecidas não duram até ao dia seguinte”…
(Faz lembrar um dos episódios que connosco ocorreu, em tempos, com um promotor da Gold Energy que dizia que a electricidade da sua empresa era mais barata porque nela não se cobrava a “taxa de potência” e, ao pedir-se-lhe que facultasse o formulário de pré-adesão para leitura e apreciação, ripostava de pronto que não estava autorizado a fazê-lo e que nem sequer podia deixar, depois da assinatura, o exemplar do cliente porque se tratava de instruções que recebera do gestor de círculo…)
COGNOSCIBILIDADE: A COMUNICABILIDADE
Cognoscibilidade: as cláusulas do contrato singular, formado a partir das condições gerais dos contratos apostas em suporte físico de adesão, terão de ser comunicadas
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De modo adequado (adequação) e
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Na íntegra (integridade)
A PONDERABILIDADE
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E com a antecedência necessária a fim de o aderente possa ponderar adequadamente os seus termos, reflectir sobre o conteúdo e seus efeitos e decidir-se naturalmente.
Tal como nos mais contratos em que se concede, após a celebração, é facto, um período de tempo dentro do qual o consumidor pode retractar-se (isto é, dar o dito por não dito), aqui a ponderação é prévia, como nos contratos de crédito imobiliário, a fim de não haver precipitações prejudiciais ao contratante-aderente, como parece, aliás, elementar.
COGNOSCIBILIDADE: A INFORMAÇÃO, OS ESCLARECIMENTOS
Conhecer o clausulado é também dispor de informação séria, rigorosa, objectiva e adequada para que dúvidas não subsistam ao firmar-se o contrato singular.
O artigo 8.º da LDC, no seu proémio, é expresso em significar que:
“O fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objectiva e adequada, a não ser que essa informação resulte de forma clara e evidente do contexto…”
A informação tem de ser transparente, objectiva e adequada ao interlocutor, ao potencial aderente, à sua formação, à sua cultura, ao seu conhecimento.
Já o artigo 6.º da Lei das Condições dos Contratos diz, do mesmo passo, de modo incisivo:
“1 - O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.
2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.”
No que nos toca, diríamos até que os esclarecimentos a prestar serão tanto os razoáveis como os irrazoáveis, tantos e tais os equívocos que por aí pairam mercê da forma capciosa como tantas das cláusulas são formuladas pelos predisponentes, pelos fornecedores interessados no objecto do negócio.
A LEGIBILIDADE
Nos formulários deve prover-se a uma “redacção clara e precisa, em caracteres facilmente legíveis (LDC: alínea a) do n.º 2 do artigo 9.º).
Com efeito, a legibilidade é um dos requisitos essenciais dos contratos do jaez destes, como segue:
“… as cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real;
E, agora, após recente lei (Lei 32/2021, de 27 de Maio) , deficiente na sua formulação, um dispositivo inserto no lote de normas aplicáveis só e tão só às relações com os consumidores finais, o requisito segundo o qual:
“São em absoluto proibidas, designadamente, as [condições gerais dos contratos] que:
Se encontrem redigidas com um tamanho de letra inferior a 11 ou a 2,5 milímetros, e com um espaçamento entre linhas inferior a 1,15».
Já num Regulamento emanado do Regulador das Comunicações Electrónicas de 23 de Agosto de 2016, entretanto suspenso, se previa – em termos de informações pré-contratuais e contratuais - que:
“Quando reduzido a escrito, o contrato deve preencher os seguintes requisitos:
a) Tamanho de letra igual ou superior a 10 pontos, tendo por referência o tipo Arial;
b) Cor de letra preta sobre fundo branco;
c) Espaçamento entre linhas igual ou superior a single; e
d) Introdução de, pelo menos, um parágrafo entre cláusulas.”
Com a precisão que agora decorre da lei, ainda pode haver variações porque se - em papel tipo-seda - as cláusulas cumprirem a regra do corpo ou do tamanho e a do espaçamento e forem imperceptíveis pela tintagem com que forem impressas (cinza claro, esmaecido, por exemplo), há que declarar, ainda assim, que “pela sua apresentação gráfica passam despercebidas ao contratante normal colocado na posição do contratante real”, excluindo-as consequentemente do corpo do contrato singular, como manda a lei.
A INTELIGIBILIDADE
As condições gerais terão de ser redigidas de modo claro e preciso.
E a lei especifica que as cláusulas que, pelo contexto em que surjam ou pela epígrafe que as precede não sejam inteligíveis aos aderentes, se devem excluir do corpo do contrato singular. Com as consequências daí advenientes que se listam, aliás, no artigo 9.º da LCGC, como veremos no lugar próprio.
A compreensão do que no conteúdo se dispõe é conditio sine qua non para que a cláusula passe na análise formal a que se proceder, de modo prévio.
Donde, a relevância do requisito da inteligibilidade para obstar às maquinações dos que oferecem tais conteúdos à contratação e à adesão dos contratantes reais.
Aliás, o CDC – Código de Defesa do Consumidor -, no Brasil, estatui no seu artigo 36 norma próxima ao prescrever:
“Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.”
A inteligibilidade (fruto da compreensão que modo breve das normas se fizer) é requisito essencial na análise formal do formulário em circulação no mercado como suporte-base dos contratos prontos-a-assinar.
A VINCULATIVIDADE
Vinculativo, segundo os dicionários, quer significar “que estabelece vínculo com; que vincula (ex.: acordo vinculativo; contrato vinculativo). = VINCULADOR, VINCULANTE ? DESVINCULATIVO;
Ou “que vincula ou serve para vincular; vinculatório”.
Ora, como refere inequivocamente a lei,
“as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes” devem ter-se por excluídas dos contratos singulares.
E percebe-se porquê.
Ainda que alguns autores e uns tantos tribunais, de forma menos avisada e errónea, entendessem que se do frontispício do formulário figurasse algo do estilo:
“as cláusulas foram comunicadas na íntegras e integralmente percebidas pelo co-contratante”,
a assinatura aí aposta, fora do corpo do contrato (constante afinal, não do anverso, mas do seu reverso), como que absorveria todo o clausulado e o clausulado todo.
Cedo as instâncias e o Supremo Tribunal de Justiça corrigiram tamanho dislate, excluindo dos contratos singulares todas as cláusulas que figurassem após a assinatura do contratante aderente.
Mas, mesmo depois de se haverem por incluídas, nem assim se dispensa a análise material que, segundo as diferentes bitolas, se podem considerar proibidas e incidentalmente nulas (nas acções inibitórias adrede instauradas) ou nulas por via directa em cada um dos contratos (por invocação em acções singulares).
CONSEQUÊNCIAS
CONSERVAÇÃO DO CONTRATO
No quadro do direito português, ainda que excluídas, manter-se-ão os contratos singulares, vigorando, na parte afectada, as normas supletivas aplicáveis, se for o caso. Ou pelo recurso às regras de integração dos negócios jurídicos, como forma de atender ao princípio da conservação dos negócios jurídicos.
NULIDADE DO CONTRATO
Os contratos serão, todavia, nulos quando, não obstante o recurso às normas supletivas ou às regras de integração a que se alude, ocorrer uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé.
INEXISTÊNCIA JURÍDICA DO CONTRATO (O NADA JURÍDICO)
Ou se nem sequer houver substrato do contrato após a exclusão do clausulado, estaremos perante, não uma nulidade, como no passo anterior, mas um nada jurídico confrontando-nos, por via disso, com a figura da INEXISTÊNCIA jurídica do contrato. E com as consequências daí decorrentes.
Tese que, em um Congresso Internacional por nós promovido no Porto, acolheu os favores do saudoso Prof. Inocêncio Galvão Telles, civilista emérito.
REPARAÇÃO DOS PREJUÍZOS
É lícito aos consumidores lançar mão da faculdade de requerer uma indemnização pelos danos causados, tanto os materiais como os morais (não patrimoniais…), de harmonia com a LDC (n.º 1 do artigo 12).
EXISTÊNCIA DO CONTRATO
ANÁLISE MATERIAL
Se após a análise formal, o contrato se salvar, seguir-se-á a análise material, cláusula por cláusula, a ver se são ou não afectadas pelas listas negras e cinzentas que vertem sobre as condições gerais absoluta e relativamente proibidas nos formulários e, nos contratos singulares, se feridas de nulidade – em qualquer dos casos – cada uma das cláusulas deles constantes, mantendo-se, no mais, na parte não viciada, os contratos por tal modo celebrados.
Eis, pois, uma súmula de algo que convém difundir “urbi et orbi”.
E que, em nosso entender, serve tanto o ordenamento jurídico português, como o brasileiro, em termos metodológicos.
Que aproveite a quem nestes domínios se move com a regularidade exigível.